por Helma Haller
Relatório da pesquisa “Trabalhando com Ofícios”, realizada com recursos de Lei Municipal de Incentivo da Fundação Cultural de Curitiba e apoio do Banco do Brasil.
A vontade de divulgar as maneiras de pensar, sentir e agir do trabalhador brasileiro inspira este Projeto. As cantigas de trabalho, outrora presentes de Norte a Sul do País, animavam o trabalho dando-lhe uma vitalidade sem par: hoje, se restringem a algumas regiões do Brasil. Esta apresentação é resultado de pesquisa de campo, bibliográfica, documental, e folclórico/musical.
Observa-se no Brasil grande variedade de cantos de trabalho, a maioria oriunda do período colonial. Hoje, parte considerável desses cantos se encontra extinta, dado o processo de modernização. Às vezes trata-se de expressões musicais primárias e simples, constituídas por onomatopéias como ei!, ai!, oh, hum! - interjeições de estímulo e reforço. A cantiga “Aboios” recolhida e ambientada por Villa-Lobos, que integra a nossa “Vivência” faz parte desse grupo. É canto monocórdio, sem palavras. Existem aboios de roça e aboios de gado. O de roça é vigoroso e estimulante ao trabalho, enquanto que o aboio de gado é triste e deseperançoso. Pelo caráter do aboio selecionado, deduzimos tratar-se de um aboio de roça.Percebe-se que as características folclóricas decorrem naturalmente do ecossistema de sua região: exatamente aquele limiar que existe entre a natureza, os afazeres domésticos, o trabalho braçal, a religião, a música e o folclore.
Na Região Norte, a música indígena ocupa um grande espaço, com um detalhe muito importante: seu apelo mágico e seu sentido religioso. Homenageamos essa Região com o “Canto do Pajé” de Villa-Lobos, o qual se baseia na música primitiva do indígena, mesclada com fragmentos de ritmos da música popular espanhola. O texto de C. Paula Barros faz referência à Tupã, deus cristão “sincretizado”, e a Anhangá, que simboliza o espírito da natureza, lutando e se defendendo contra a destruição que vem do homem. Anhangá foi um dos primeiros defensores da ecologia e do meio ambiente.No Nordeste, canções populares não faltam. Provavelmente é a região que mais produz Cantigas de Trabalho: jangadeiros, cangaceiros, trabalhadores de cana-de-açúcar, colheitadores e quebradores de cocos entre muitas outras. Dessa Região selecionamos os cantos de usina Cana-Fita e Engenho Novo, a Suíte do Pescador, de Dorival Caymmi, e as cantigas resultantes da pesquisa de campo, colhidas e ambientadas pelas integrantes do Collegium Cantorum: “Sou Lavrador”, “Comprei um Burro Turdilho”, “Ó Que Triste Sorte”, “Toca o Boi”, “Sereia”, “Limuero” e “Muleque Malandré”.A Região Sudeste é marcada por uma riquíssima coletânea de canções populares, pelos sambas e marchinhas de carnaval do Rio de Janeiro, e a cantiga sertaneja de São Paulo. Por ser a região mais habitada do Brasil, essas manifestações populares já estão amplamente divulgadas com reconhecimento até internacional. Escolhemos para a nossa “Vivência” cantigas como “Algodão”, fandango de Cananéia, de São Paulo, no belo arranjo de José Geraldo de Souza, e “A Sanfona”, sobre a plantação de café, de Villa-Lobos.
A Região Sul é extremamente rica em termos de cancioneiro popular. Procuramos pesquisar em campo, mas não foi possível localizar material inédito algum, por este aspecto já estar bastante explorado. Durante muito tempo, coube aos carreteiros um papel fundamental no desenvolvimento da região. Com suas carretas puxadas por bois de canga, iam e vinham, trazendo as mercadorias do interior para o litoral. Os carreteiros não andam a pé, eles vão a cavalo, acompanhando os camboios, como é denominado o grupo de carretas. A “Canção do Carreteiro” é nossa homenagem a esses homens valentes da Região. Uma tradição das rendeiras catarinenses é o trabalho em grupo, cantando as “Cantigas de Ratoeira”, espécie de fandango de roda, onde os figurantes trocam quadrinhos entre si. Uma delas integra nosso programa, e, qual não foi nosso entusiasmo ao encontrar, na pesquisa de campo, uma rendeira que ainda mantém viva essa tradição de cantar fazendo sua renda. A obra “As Costureiras” de Villa-Lobos, se dá no mesmo ambiente e espírito. Ainda do Rio Grande do Sul, incluímos: “O Tropeiro” e “A Floreira”. Não poderíamos deixar de brincar com o famoso “Balaio, Meu Bem, Balaio”, do nosso Estado, que foi um dos motivos usados por Brasílio Itiberê da Cunha, ao escrever sua “Fantasia Característica – A Sertaneja”, que entrou para a história da música brasileira como peça precursora do nacionalismo musical.
A presente “Vivência” abre e fecha com obras do mestre Heitor Villa-Lobos, o maior gênio musical brasileiro do século XX, criador da música brasileira nacional. Iniciamos com “Heranças da nossa raça”, texto de C. Paula Barros, discorrendo sobre as características do trabalhador brasileiro de norte a sul, e concluímos com “Invocação em defesa da Pátria”. Com texto de Manuel Bandeira, essa obra é um canto cívico religioso em favor da Nação. Desejamos a todos os presentes uma experiência inesquecível com as tradições dos nossos antepassados.
Veja alguns exemplos nos vídeos "boiadeiro"
"pesca " e "aboios"
Sinopse da pesquisa de campo
Por Maria Herrmann Destefani.
Material pesquisado e gravado por Giovana de Sales Gregório, Maria Herrmann Destefani e Verônica Magalhães.
Elvira Magalhães (80 anos); Data da Coleta: 04/07/2004
Local: Vitória da Conquista, BA
Elvira vivenciou na década de 1940 a lida dos vaqueiros quando levavam o gado para a venda. A viagem ia por mais de 20 léguas, levando toda a sorte de provisão disponível na época: carne seca, calderões, bacias, remédios. Contou que aboiavam o gado cantando. Iam de Lajedão, Caetité até Feira de Santana, onde havia a charqueada (venda de charque). Iam também perto da Cachoeira, para vender o gado. Iam viajando e cantando. Músicas que cantou: “Oh que triste sorte”, e o Recitativo: “Oh! que ema tão ligeira”.
Oh! que ema tão ligeira da canela tão faceira na descida da ladeira, na subida da porteira Cachorrada vai atrás, sacudindo a mulambeira; ataia, ataia a ema, perdeu a carreira
Ezechias Araújo Lima e Carlos Jehovah de Brito Leite;
Data da Coleta: 04/07/2004
Local: Vitória da Conquista, BA
Estudioso das manifestações culturas do Sudoeste da Bahia, Ezechias Araújo Lima é poeta, dramaturgo, historiador, professor de línguas. Ele, juntamente com Carlos Jehovah de Brito Leite, escreveram o Auto da Gamela, uma coletânea de cantos de Incelência. Incelência são os cantos entoados por ocasião da morte de crianças com menos de 7 dias. Jehovah deu uma explicação bastante didática dos costumes povo da Região:
Canta-se para nascer, para trabalhar e para viver.
Para trabalhar: acontece em certas Regiões o “roubo” ou mutirão”: um grupo chega de surpresa por livre iniciativa e, durante à noite, limpa o roçado de alguém. Para animar cantam. O dono da roça retribui dando ao grupo a comida e bebida.
A Pila do Café: pilar o café durante a noite, reunidos até pela manhã, ao batuque das mãos do pilão. Os homens cantam a 1ª. Voz e as mulheres a 2ª. Voz.
Sapateado, em 13 de maio: os agregados, como eram chamados os negros, batem os pés e as palmas das mãos e cantam versos sobre os acontecimentos do período de um ano, em roda. As mulheres, por sua vez, trançam fitas no pau de fita.
Festas Juninas: São João, São Pedro, Santo Antonio. “Otimismo e entusiasmo pela fartura da produção e pelo ano de chuva”. Cantam à colheita do milho e do feijão.
O Boi: Cantar a repartição do Boi. O boi representa muito para o nordestino e canta-se a repartição do boi com otimismo e agradecimento.
O Forró: Nascimento, Morte, Trabalho, Produção e Forró. O forró perde a raiz e vai servir o mercado.
Cantar para Morrer: As Incelências. Canta-se para crianças mortas de até sete dias. Consideram-nas anjos, com missão de levar recados daqui da terra. As carpideiras lamentam. Vem gente de longe para o acontecimento. No nascimento há fogos e o pirão das parteiras.
Ezequias, cantou-nos o canto cantado no Engenho entre as décadas de 1940 e 1955:“Toca Boi, toca esse engenho”.
Ana Isidora (105 anos), Padre Joselito Oliveira Cruz, Inês Isidora
Data da Coleta: 06/07/2004
Local: Comunidade do Cinzento – Planalto, BA
O Cinzento é uma quilombada, com cerca de 300 pessoas e 30 casas, oriunda da Região de Rio de Contas, com negros sem nenhuma miscigenação. Os cantos que embalam esta comunidade trazem uma tônica bem religiosa, sobretudo no Canto “Santa Luzia”, que foi cegada quando adolescente.
Padre Joselito nos levou à casa de Dona Ana Isidora, uma senhora de 105 anos. Dona Ana Isidora, conforme contado por ela mesma, nasceu em Poções, BA, “...prá lá do Rio do Vigário”, perto de Nova Canaã. No “inverno de 1904 tinha 5 anos”. Cresceu “tentando os minino”. “...Trabalhava na enxada, arrancando mandioca...,trabalhava também na roda” {de mandioca}. Casou aos 18 anos e teve nove filhos. Inês é a filha mais nova. Dona Ana Isidora é perfeitamente lúcida, se movimenta sozinha pela casa, e ainda traz na sua lembrança os tempos que puxava o “cruzeiro”. Puxar o Cruzeiro é puxar a procissão.
Nilza de Jesus Silva (deve ter perto de 45 anos)
Data da coleta: 07/07/2004
Local: Comunidade do Bananal, Rio de Contas, BA
Dona Nilza é irmã do líder da Comunidade do Bananal, Sr. Carmo. Esta comunidade também é uma quilombada originária de Rio de Contas. Tiram a subsistência da roça: plantam mandioca, abóbora, cana, melancia, abacaxi. Possuem um engenho de farinha comunitário, que atende algo em torno de 30 famílias. Este engenho é motorizado. Importante salientar que o motor foi o responsável pelo término da grande maioria dos cantos de trabalho. Antes do advento do motor no trabalho, um homem colocava a mandioca de um lado e o outro puxava a roda cantando. Hoje, os homens e mulheres que trabalham no engenho junto ao motor não cantam mais: o barulho é muito grande. Dona Nilza ensinou-nos a cantar a música “Sou lavradô, homem da roça”, mas não nos autorizou a gravar, porque, segundo ela, para cantar “tem que tê voz...” A música foi registrada pelo canto dos alunos da professora Maria Aparecida Lopes da Silva, na Escola da Comunidade, tendo um pequeno solo do aluno Vanderlúcio Nascimento da Silva.
Odete Vitória do Nascimento (60 anos)
Data da Coleta: 07/07/2004
Local: Comunidade da Barra, Rio de Contas, BA
A Barra fica separada do Bananal por uma Barragem. Uma parte do pessoal da quilombada foi para a Barra e outra para o Bananal. Dona Odete, juntamente com seu marido, Sr. Armiro José Augusto, e sua prima Raquel, foi a pessoa que mais nos ensinou Cantos de Trabalho. Como ela disse: vivíamos “...trabalhando e cantando...”. Encontramos Dona Odete trabalhando numa roça de feijão. Logo que chegamos lá Da. Odete disse que não estava com vontade de cantar: sentia saudades dos filhos, mas à tarde, após o almoço (carne de sol, quiabo na abóbora, arroz e laranja), cantou para valer!... “Eu e minha irmã Tereza (tenho uma irmã Tereza que morava no Bananal, hoje mora no Rio de Contas) cantava que se ouvia lá no Bananal – “nóis abria a boca no arto – meu cunhado dizia – o
qué qu’essas menina vieram fazer aqui no Bananal – nóis só trabalhando e cantando...” “Pisei o pé n’areia, Sereia”, “Vai trabalhá, muleque malandré”, “Comprei um burro turdilho”, ‘ah, eu cantava tanto... tem essas de roda’: “Limuero abala, abala”
Da. Maria Araújo Nenê dos Santos (60 anos), lavadeira do Rio Fraga
Data da coleta: 07/07/2004
Local: Rio de Contas
Vimos Da. Maria Araújo entrando num beco com um balde na cabeça, dirigindo-se ao Rio Fraga e foi lavar roupa com mais duas lavadeiras e 2 crianças. O Rio Fraga é um rio de corredeira, circundado por montanhas. Da. Maria Araújo nos contou que o sabão que ela lavava roupa antigamente era de bola, feito com sebo de boi. O brombril era feito de fibra de coco. Da. Maria Araújo, assim como todas as lavadeiras lavam roupa na pedra: esfregam e batem na pedra. Ela não cantava e disse que cantar “...era do tempo dos antigo...”.
Eulina Maria Luz (60 anos)
Data da coleta: 08/07/2004
Local: Rio de Contas
Encontramos Da. Eulina na Praça do Arquivo Público em Rio de Contas, com uma imensa trouxa de roupas na cabeça. Com essa imensa trouxa de roupas na cabeça ela cantou e dançou. Disse-nos que não lavava mais roupa no rio, por causa do reumatismo. Mas cantou e dançou para valer. Disse que cantava muitas músicas enquanto lavava roupa “...música de igreja, música de roda...” e cantou Gabiraba.
Profa. Evelina Trindade Lima, Secretária Municipal de Educação de Rio de Contas
Data da coleta: 08/07/2004
Local: Secretaria de Educação, Rio de Contas, BA
Conversamos com a Profa. Evelina, após visita ao Arquivo Público de Rio de Contas, que apesar de muito rico e organizado, não tinha nenhuma partitura. A arquivista nos levou até a Secretária Municipal de Educação, que cantou duas músicas de trabalho. A primeira: “Eu vou pisar café” e a segunda, relacionada ao samba de roda: “A chave do baú Tereza tem”.
Pesquisa havida em 01/02/2005, com Dona Normélia Barcelos, 60 anos
Local: Florianópolis – Lagoa
Profissão Rendeira
Pesquisadora: Maria Herrmann Destefani
Encontrei Dona Normélia fazendo renda, com bilros, na Av. das Rendeiras, ao lado do Barcelos Pousada/Restaurante, que pertence a sua filha. D. Normélia é rendeira de Portugal, filha de mãe portuguesa e pai brasileiro. Veio ao Brasil com 7 anos de idade. D. Normélia, também conhecida por Norma, mostrou-me muitos artigos e livro editado por jornalistas que a entrevistaram ao longo desses anos.
Dona Normélia canta muito enquanto faz suas rendas. Os cânticos, aprendeu com a mãe. Segundo depoimento dela, a mãe foi quem trouxe a música “Ratoeira” para o Brasil. Seus olhos brilharam de satisfação quando soube que um Grupo Coral sabia cantar a música que ela cantava desde criança.
Sinopse do depoimento de Dulce Primo, Maestrina – (filha de lavadeira)
Nasci em Maiuaçu, uma cidade perto do Rio Caparaó, portanto, uma cidade muito fria. Uma cidade no meio das montanhas e com um rio passando: o Rio Grande. Maiuaçu quer dizer “Rio Grande”. Do lado havia a cidade de Maiumirin que era o “Rio Pequeno”, uma fluente do Rio Doce, realmente enorme. As famílias pobres, mais simples, moravam a beira-rio. As famílias mais poderosas rodeavam a igreja: a Matriz. Essas famílias eram as famílias ricas. Então, eu vivia na parte baixa – vamos dizer assim, e feliz porque éramos pessoas muito ricas “como vida” e, pessoas “cantadoras” literalmente.
Então, minha mãe lavava roupa no rio, ternos de brim-caqui. Porque em frente a minha casa tinha um colégio interno, então, todas as pessoas de posse da região mandavam os filhos pra estudarem lá. E minha mãe para sobreviver lavava os ternos de brim-caqui dos alunos. Lembro-me perfeitamente dos ternos, aqueles engomados. As meninas usavam as anáguas que eram aquelas enormes rodadas, branquinhas: aquilo quarava, quarava, quarava... no sol, depois batia-se na pedra. E a minha mãe sobrevivia disso.
De um lado estava a ponte que dava acesso ao rio, então as pessoas iam lavar roupa ali. As lavadeiras que moravam no que a gente chamava de “beco”, onde estavam as pessoas mais humildes ainda, que não tinham sua casa, nada disso, então, elas moravam em casinhas uma ao lado da outra. E eram todas lavadeiras. Muitas sustentavam a família com isso. O mineiro fazia muitas trouxas de roupas, era comum ver as pessoas passando na cidade com trouxa de roupa. Enrolavam uma toalha, ou pano, bem enrolado fazia uma “rodilha” punha na cabeça e punha a trouxa de roupa em cima (para não machucar).
Então, se cantava muito, não conversavam, elas cantavam... E quem estava do lado de cá do rio esperava a vez de cantar, a outra parava, o de cá começava, às vezes entoado junto. Minha mãe também cantava junto com as demais lavadeiras, e eram canções de roda, muitas vezes, que a gente depois ia brincar na porta, de tarde quando acabava de lavar roupa, punha as cadeiras nas portas das casas, e a gente brincava e as mães ficavam vigiando e conversando com as comadres. A gente estava por perto e as crianças daquela época, não só da minha família, mas todas as crianças ajudavam. Por que? Porque essa roupa era lavada no rio, esfregada, passava o sabão feito em casa, e esfregava na água do rio. Sempre tínhamos muitas pedras. As roupas eram batidas tirava o sabão, tudo nessas pedras. Você esfregava, esfregava a roupa, tirava o sabão e batia ali. E cada batida, vinha o ritmo com as batidas. Aliás, as batidas acompanhavam o ritmo, sabe? Você batia, batia, batia a roupa, enquanto cantava. Então, batia, batia a roupa ... botou mais sabão e trás pra ferver, aí já mais perto de casa. Então, a gente tinha um tacho enorme, feito no fogão próprio pra isto, não saía dali. A criançada, que é que fazia? Botava fogo, pra ferver a roupa. A roupa toda era fervida. A roupa era branca, branca, branca de brim, de linho, tudo algodão engomado, engomado, engomado. E a criançada, fazia o que? A criançada tomava conta do fogo. Depois, punha pra quarar. Então tinha estiva, que era um trançado de bambu, tinha esteira. Em Minas a gente chama de esteira. Em cima dos palanquinhos, punha a roupa para ser quarada ali. Esfregava a roupa, e ia com ela de novo pro rio pra bater, bater, bater e tirava todo o sabão, clarear toda e botar numa bacia grande com anil. Aquelas pedrinhas azuis. Algumas iam pra ser engomadas. Então do lado, tinha uma panela grandona, com goma feita de polvilho. Chacoalhava-se bem, e punha pra secar em cerca de arame. Arame farpado.
Não existiam grampos. E a criançada toda, toda ajudava. Muitas vezes eu ficava lavando a roupa da casa, bater a roupa ou torcer para ajudar a minha mãe, e elas davam pra gente, peças pequenas, peças miúdas. Só que as peças pequenas, corriam rio abaixo, então corríamos, feito louco, pela beira do rio, atrás de uma meia que estava indo embora, e tinha que correr, senão apanhava. E corria muito. Eu me lembro que a mamãe tinha uma voz agudíssima, era um soprano ligeiro, e eu repetia a voz dela. Eu me lembro muito que eu repetia as canções da mamãe. E eram coisas trágicas. Assim: “Quem tem mãe tem tudo, quem não tem não tem nada.” E umas coisas assim. “À uma hora eu nasci, as duas me batizei, às três estava correndo, as quatro eu me casei”. Aí vai, casô, teve filho e morreu. Sabe, era doze horas a história. Aí na décima segunda hora eu morri. Eram coisas assim: situações vividas, de forma geral, muito intensamente, e era até natural que essas canções viessem.
Nós tínhamos as canções infantis que eram canções leves. Eu me lembro que mamãe cantava a da florista: “Eu sou a florista, flores estou vendendo, venha cá menina que por ti estou morrendo. Queres uma flor, passa-me um tostão, eu não quero nada eu quero só teu coração”. Vinham coisas assim muito infantis. E elas faziam essa coisa naturalmente, bater a roupa: também muito bem no ritmo. Ficava aquele sonzinho muito bem no ritmo. A roupa molhada batia na pedra, ela tem um som bem característico...
Mas enfim, eu acho que foi um trabalho que, dentro da uma cidade onde as mulheres tinham profissão. E era uma coisa alegre, não eram as coitadinhas... E elas tinham um reconhecimento das famílias realmente. Porque, afinal a roupa delas. Coisa de responsabilidade.
Cantos de Trabalho
uma reflexão de Giovana Sales Gregório
Como começar? Primeiramente olhando onde estou, para partir daqui para algum lugar sem imaginar que o mundo é extensão, continuação, diminuição ou variação do meu mundo. Sem idealizar ou comparar, mas encontrar o outro que às vezes é tão semelhante, mas eu não tenho a medida, eu não sou a medida. Então, eu posso encontrar paralelos porque somos humanos simplesmente, mas qualquer paralelo é fugaz porque apesar de carregarmos semelhanças vivemos de modos muito, muito diferentes.
A pesquisa:
A tendência natural de eruditos que se “aventurem” na pesquisa de fatos folclóricos é tentar encontrar apoio em outros paralelos científicos mais familiares que não a da própria disciplina que os estuda: o Folclore. Para que aqueles “expliquem” a observação pura e simples e ajudem na compreensão terminológica. Podendo, desta forma, adentrar no campo na Historiografia, por exemplo, ou da Psicologia, com ajuda do legado de Jung. Esta é uma forma válida, ainda que passível de conjecturas e enganos, no campo da História, pode-se incorrer no erro em creditar as transformações a uma suposta evolução – “não é necessário que ele (o fato) venha do passado, pode ser uma inovação introduzida pela difusão ou criado dentro da própria cultura”, como ensina Jorge Dias. Poderia citar muitas armadilhas que nos desviaria, e não apenas nos auxiliaria, irmos ao encontro do genuíno. Dizendo isto, não pretendo negar a ajuda das outras esferas do saber humano, tão pouco que o erudito não deva conhecer ou “aventurar-se” no campo Folclore, menos ainda que o saber popular é algo estático e imutável. Principalmente reconhecendo que em cada grupo dito erudito, cosmopolita, de cultura urbana, cartesiana e iluminada há, sem dúvida, pelo menos filhos ou netos de pessoas pertencentes a grupos que ainda preservam a tradição popular. E este é um dos principais ganchos do nosso trabalho.
O parentesco:
Parto, portanto, de uma pergunta: O que existe de familiar? Pretendendo uma aproximação das cantoras do Collegium Cantorum, as quais são: urbanas, eruditas de formação e, na sua maioria, moram e nasceram em Curitiba (Curitiba é conhecida nacionalmente por ter acolhido a cultura de inúmeras etnias européias e seus moradores se reconhecem como descendentes de polacos, alemães e italianos, bem como preservam costumes, tradições e sentimentos de seus familiares imigrantes). Aproximar-se e conhecer os grupos que preservam o Canto de Trabalho, muito mais que compreender. Este foi um dos objetivos escolhidos para prosseguir neste campo tão diverso do de onde parte o grupo. Escolhendo esta abordagem encontramos, no próprio grupo, parentes e amigas de pessoas mais próximas a este fato folclórico. Para citar apenas um exemplo: eu mesma sou neta de um horticultor, e de uma lavadeira que cantava batendo roupa na beira do rio no Estado de Minas Gerais, que lavava a roupa com sabão feito de cinzas, que coarava a roupa no sol, que gelava as pernas na água e que depois, ainda, engomava tudo para passar com ferro à carvão.
Percebidas ainda outras ramificações, também tão próximas, fica claro que o Canto de Trabalho está intimamente ligado à vida do brasileiro, mesmo que ele não viva na periferia, mesmo que as lavadeiras de hoje lavem as roupas de seus clientes na máquina, com sabão em pó, e ouçam programas de rádio enquanto isto, ou assistam programas de televisão _ os quais são substitutos muito semelhantes em relação à função: elaborar os acontecimentos da vida, refletir sobre a vida, expressar seus sonhos, lembrar o passado _ suas mães ou avós cantavam os mesmos assuntos, os mesmos sentimentos, pelos mesmos motivos, embora seus corpos estivessem muito mais comprometidos com a atividade, embora o ritmo de vida fosse outro.
Hoje podemos afirmar que O Canto de trabalho está acabando como acontecimento coletivo, foi muito difícil localizar algum grupo ou algum lugar em que ele já não tenha se tornado representação para turistas e pesquisadores, fonte de renda, ou apenas uma vaga memória da juventude. O que encontramos foram filhos e netos que se lembram de terem visto um dia, que se lembram de alguns fragmentos que cantaram, um pouco envergonhados em princípio. O que encontramos foram estudiosos amantes destes cantos e que registraram alguns, e uma variação do Canto de Trabalho, que provavelmente ficaria mais adequado em outra pesquisa, que são as festas Católicas aos padroeiros, as festas juninas festejando a fartura, enfim, festas populares com quadrilhas e brincadeiras que cantam também, inclusive alguns cantos que eram exclusivos do trabalho, mas que hoje não ecoam na roça ou no mar, mas no terreiro da comunidade com fogueira e comida. Ouvimos falar dos mutirões, onde os vizinhos e amigos “assaltam” a roça do outro para ajudar na colheita ou plantio, e que cantam enquanto trabalham varando a madrugada, mas não presenciamos isto, apenas encontramos na Comunidade do Bananal homens, mulheres e jovens descascando a mandioca e preparando todo o processo da farinha, porém o som era da máquina de moenda, embora pudéssemos perceber o espírito do mutirão naquele curto momento em que estivemos lá.
Função do Canto de Trabalho:
O outro gancho escolhido para abordar o assunto, e que já sinalizei acima, é a funcionalidade. Ao me deparar com o tema Cantos de Trabalho procurei escolher, primeiramente, identificar as necessidades e a motivação para um grupo de pessoas cantar enquanto trabalha. Dentre muitas possibilidades me ative em duas: diálogo e ritmo.
Diálogo porque os temas dos cantos revelam os valores, os sentimentos e as indagações íntimas comunicando de maneira poética, lúdica ou trágica. Ritmo porque a cadência do canto se funde ao esforço e cansaço do corpo. Ritmo e diálogo, os considerei perfeitamente observáveis e, novamente, próximos. O ritmo é um elemento de comunicação imediata e contagiante e o diálogo é uma necessidade básica humana. Ritmo é o pulso que une, a ginga do corpo e o comando para o corpo. Diálogo é a memória, o “porquê” estou ali, quem eu sou ou quero ser. Quanto às formas: poética, lúdica e trágica, se pode observar, na temática das cantigas, estas variações em que se apresentam como: a metáfora, o imaginário, o jogo e troca simbólicos, e a fatalidade dos acontecimentos da vida como saudades, perdas, amor, beleza, a influência da natureza, os papéis sociais e a preocupação com os entes queridos que foram tentar a vida em outro lugar.
O corpo humano:
A relação com o corpo é a fonte central de informação escolhida para nortear a pesquisa. O corpo humano como energizador do trabalho, o corpo humano estendido pelas varas de bater feijão, acoplado na peneira, sustentando a trouxa de roupa, se agachando infinitamente até o solo, até a água, o corpo humano fustigado pela temperatura do sol e do sereno. O corpo agüentando a carga enquanto sobe e desce os morros por uma ou duas horas até a roça. Mas, para ver isto, é claro que a agricultura, a pescaria, o trabalho só poderia ser de subsistência. E quando falamos de subsistência vamos encontrar aqui em Curitiba mesmo, no centro da cidade, pessoas carregando pesos insuportáveis, caminhando distâncias absurdas para subsistir.
A realidade de ter pouco recurso é um fator que assemelha o trabalhador do campo, do interior, do mar, da selva com o trabalhador de um centro urbano. Bem como, identificar coletores em qualquer ambiente é outro fato facilmente observável em qualquer grupo humano, catar feijão na Bahia, catar papel na rua Cândido de Abreu em Curitiba ou catar uvas nos parreirais da França são serviços que prescindem o manuseio, o esforço, a seleção, a repetição, a coordenação, enfim. O quê muda, então? O ambiente, a forma como se organizam, a identidade e relações sociais, a recompensa ou paga, e a rotina; mas: o deslocamento, a carga, a coordenação, o trabalho do corpo são os mesmos. O peso e o cansaço estão igualmente presentes em qualquer ponto do mapa mundi para pessoas que lidam diariamente com a subsistência, e não diretamente com o mercado de trabalho, o qual possui outros tipos de pressões e cargas.
Os hábitos:
O trabalho interfere diretamente nos hábitos. Esta viajem até a Bahia, entrevistas e leituras podem confirmar que a sociedade se organiza no entorno da sua atividade econômica. Seja ela marcada pelo mercado, pelo estado, pelos recursos naturais da região, pelas habilidades de seus habitantes, enfim. O humor, o ritmo de vida, a rotina, e muito mais áreas da vida humana são estruturadas de acordo com o quê a população necessita e escolhe fazer para sobreviver ou crescer, para adquirir ou manter.
Pudemos encontrar na Bahia comunidades que funcionam de maneira bem sistêmica e muito orgânica, que estão totalmente dependentes do meio-ambiente e da saúde de seus corpos, que se unem para cuidar dos animais e da terra, que conversam em frente suas casas no final de tarde, que cuidam de seus velhos e fazem festas para celebrar o fruto do trabalho. E falando em trabalho, são pessoas que trabalham muito e ainda cantam ou lembram do tempo em que se cantava comunitariamente.
Mas a época é outra e não precisamos acusar a tecnologia, o mercado ou a mídia como responsáveis pelo fim do Canto de Trabalho. A necessidade humana sempre será a de encontrar força e apoio para sua luta para sobreviver e para sua luta pela realização de seus sonhos, a forma como isso acontece muda de geração para geração, um conjunto de coisas contribui para uma cultura se transformar. Se tentamos hoje registrar o Canto de Trabalho fruindo da fonte e não conseguimos, devemos nos perguntar o quê está ficando no lugar? E devemos tentar não nos esquecer de que a necessidade das funções do Canto de Trabalho continua na alma humana, desde que o homem enfrentou a escravidão em suas mais variadas formas.
VIVÊNCIA
CANTOS DE TRABALHO
Direção Geral: Maestrina Helma Haller
Orientação dramática e roteiro: Giovana Sales Gregório
Coreografia: Luciana Figueiredo
Percussão: Paulo Demarchi
Bota Batalhão: Bruna Patrícia Ferreira Borges
ROTEIRO
Introdução
Heitor Villa-Lobos
“ Heranças da nossa raça” - Texto de C. Paula Barros
“Aboios”
“ O canto do Pajé” - Texto de C. Paula Barros
Região Norte
Suíte do Trabalhador do Campo
Bahia
Plantador de feijão recolhido e ambientado por
Verônica Magalhães – “Sou lavradô”
Pernambuco
Canto de usina – arranjo
José Geraldo de Souza - “Cana-fita”
Rio Grande do Norte
Côco de engenho - arranjo
José Geraldo de Souza - “Engenho novo”
São Paulo
José Geraldo de Souza - “Algodão” (Fandango de Cananéia)
Heitor Villa-Lobos - “A Sanfona” (cateretê à moda paulista)
Suíte do Trabalhador Itinerante
Bahia – arranjo inédito
Ana Cristina Lago – “O que triste sorte” e “Toca boi, toca esse engenho”
Rio Grande do Sul – arranjo anônimo
“ O Tropeiro”
Bahia – arranjo inédito
Caio Nocko – “Comprei um burro turdilho”
Rio Grande do Sul – arranjo
Paulo Ruschel – “Canção do Carreteiro”
Suíte do Pescador
Dorival Caymmi – arranjo E. Ruzanowki
“ Canção da partida”
“ Vento”
“ Pescaria”
Suíte dos Ofícios do Lar
Bahia – Cantos das Lavadeiras - arranjos inéditos
Sérgio Deslandes – “Sereia”
Luciana Elisa Hoerner – “Limuero”
Virgínia Pimentel – “Muleque Malandré”
Santa Catarina – Canção das rendeiras - arranjo
Carlos Lucas Besen – “Ratoeira”
Rio Grande do Sul – arranjo anônimo
“A Floreira”
Bahia – Recitativo:
“ Oh! que Ema tão ligeira”
Paraná
Fandango – arranjo anônimo -
“ Balaio, meu bem, balaio”
Heitor Villa-Lobos – “As costureiras”
Conclusão
Heitor Villa-Lobos – “Invocação em defesa da Pátria” (canto cívico religioso)
Texto de Manuel Bandeira
Fontes Bibliográficas:
Biblioteca Nacional (RJ)
Biblioteca da Escola Nacional de Música (RJ)
Biblioteca da Funarte (RJ)
Biblioteca da Associação Nacional do Folclore (RJ)
Museu Villa-Lobos
Museu da Imagem e do Som (Curitiba,PR)
Biblioteca do Conservatório de MPB da Fundação Cultural de Curitiba (PR)
Biblioteca da Escola de Música e Belas Artes do Paraná
Biblioteca da Associação Nacional do Folclore (RJ)
Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia/TV Educativa
Estudo do legado de Alceu Maynard Araújo, Afonso Arinos, Amadeu Amaral, Renato de Almeida, Corina Peixoto Ruiz, Mário de Andrade, J. de Figueiredo Filho, Gonçalo Sampaio, José Geraldo de Souza, Eduardo Souto, Henriqueta d’Abreu, Oneyda Alvarenga, e Carlos Felipe Horta.
Acervo do Arquivo da Camerata Antíqua de Curitiba, PR
Acervo Particular de Rodrigo Herrmann em Curitiba, PR
Acervo Particular de Helma Haller em Curitiba, PR
Acervo Particular de Dulce Leandro em Curitiba, PR
Acervo Particular de Joice Todeschini em Curitiba, PR
Enciclopédia da Música Brasileira – Erudita, folclórica e popular. (Art Editora Ltda. 1977)
O grande livro do folclore – Carlos Felipe Horta (Editora Leitura – 2004)
Cancioneiro da Bahia – Dorival Caymmi (Editora Record – 1978)
Brasil, Música e Folclore – Neide R. Gomes e Esmeralda B. Ruzanowski (Edart 1982)
Corais do Folclore Brasileiro - José Geraldo de Souza (Ricordi Brasileira 1955)
Louvai Cantando – (Editora Sinodal RS, 1968)